IFRS S1 e S2: o ponto de virada entre sustentabilidade e tributação corporativa
- Victor Serrão

- 16 de out.
- 4 min de leitura

Nos últimos anos, o mercado financeiro global passou de uma retórica de sustentabilidade para uma era de mensuração. O que antes era discurso de marketing virou obrigação de disclosure. E o movimento que consolida essa virada é inequívoco: a emissão dos padrões IFRS S1 e S2 pelo International Sustainability Standards Board (ISSB).
Mas o que muitos ainda não perceberam — e deveriam — é que esses novos padrões, embora travestidos de simples normas de disclosure, podem redefinir o eixo fiscal e contábil das empresas nos próximos anos. A sustentabilidade, que até aqui habitava a esfera reputacional, começa a invadir a lógica dos balanços — e, inevitavelmente, a tributária.
O nascimento de um novo eixo financeiro: do ESG ao balanço
O IFRS S1 exige que empresas divulguem informações sobre todos os riscos e oportunidades de sustentabilidade que possam afetar seu desempenho financeiro. Já o IFRS S2, mais específico, trata do clima: governança, métricas, metas e análise de cenários de aquecimento global.
À primeira vista, parece apenas um movimento de transparência. Mas a história da contabilidade mostra que toda norma de divulgação, quando internalizada nos sistemas corporativos, acaba moldando comportamento econômico e tributário.
Foi assim com o impairment (IAS 36), com as provisões (IAS 37) e com o reconhecimento de receitas (IFRS 15). Agora, com os riscos climáticos entrando na equação financeira, é natural esperar um novo ciclo: o da contabilidade ambiental com reflexos tributários.
Quando o “intangível climático” começa a gerar efeitos fiscais
Não será preciso muito tempo para que as divulgações sob S1 e S2 comecem a gerar ajustes contábeis materiais — e, por tabela, impactos no IRPJ, na CSLL e nos tributos sobre consumo.
Empresas terão de reconhecer provisões ambientais, revisar testes de recuperabilidade de ativos à luz de cenários climáticos e contabilizar créditos de carbono ou investimentos em mitigação. E cada um desses eventos passa pelo filtro fiscal, ainda que de forma indireta.
O art. 8º da Lei 12.973/2014 impede que provisões contábeis sejam automaticamente dedutíveis, mas isso não elimina o efeito econômico: o lucro societário muda, os indicadores financeiros mudam, os covenants bancários mudam — e, portanto, a narrativa fiscal também muda.
Mais do que isso: os créditos de carbono, que até pouco tempo viviam num limbo contábil e jurídico, agora encontram nas IFRS S1/S2 uma base técnica para mensuração e apresentação. E o Brasil, com a Lei 15.042/2024, já começa a regulamentar o mercado de carbono regulado (SBCE).
É difícil imaginar que, com dados padronizados de emissões sendo divulgados, o Fisco e o regulador ambiental não cruzem essas informações para calibrar políticas de taxação ou incentivos verdes.
Um novo campo para o direito tributário: o “fiscal climático”
Estamos às portas do surgimento de uma nova disciplina tributária híbrida, que chamarei aqui de fiscalidade climática.
Ela se assentará em três pilares:
Mensuração confiável de emissões (via IFRS S2);
Tributação e precificação de carbono (via SBCE e normas correlatas); e
Incentivos fiscais orientados por desempenho climático.
A conexão é inevitável. Se a empresa mede, divulga e audita suas emissões, o Estado pode — e vai — usar esses mesmos dados para estruturar taxas de carbono, regimes de crédito fiscal verde e auditorias cruzadas.
Esse é o próximo passo lógico: a sustentabilidade integrada à arrecadação, num movimento semelhante ao que ocorreu quando a digitalização contábil gerou o SPED e o cruzamento massivo de dados fiscais. A diferença é que agora o motor não é o controle da evasão, e sim a transição climática. E quem se antecipar a isso terá vantagem competitiva — inclusive fiscal.
ESG, preço de transferência e tributação internacional
A globalização tributária não vai ignorar o clima. O novo regime brasileiro de preços de transferência (Lei 14.596/2023), alinhado à OCDE, já exige uma análise funcional baseada em “funções, ativos e riscos” — e é apenas questão de tempo até que os custos e funções ESG entrem nesse radar.
Imagine duas subsidiárias que produzem o mesmo bem, mas uma investe pesadamente em neutralização de carbono e outra não. O custo marginal e o perfil de risco não são os mesmos. O que hoje é uma escolha voluntária poderá, em breve, mudar a margem de comparabilidade e afetar o cálculo do arm’s length.
A tributação internacional vai, cedo ou tarde, reconhecer o custo da sustentabilidade como componente legítimo de preço. E quando isso acontecer, empresas que já reportam sob S1 e S2 terão documentação pronta para sustentar seus posicionamentos.
O futuro da governança tributária é ESG
A área tributária corporativa, historicamente voltada à eficiência e ao compliance, precisará aprender a dialogar com o departamento de sustentabilidade e com o comitê de auditoria. Não se trata mais de “como pagar menos imposto”, mas de como estruturar uma governança fiscal coerente com a narrativa ESG da companhia.
Se a empresa divulga que pretende ser net zero até 2030, mas mantém incentivos fiscais baseados em consumo intensivo de energia fóssil, há uma inconsistência de governança.Se divulga provisões climáticas robustas e não ajusta suas bases fiscais, haverá distorções de transparência.
O investidor e o regulador perceberão essas incoerências — e o risco reputacional será tão caro quanto o tributário.
O que esperar nos próximos cinco anos
As IFRS S1 e S2 ainda são voluntárias em muitas jurisdições, mas sua incorporação é apenas questão de tempo. A IOSCO já manifestou apoio global, e a CVM estuda caminhos para adoção gradual no Brasil.
À medida que os relatórios de sustentabilidade se tornem comparáveis, auditáveis e interconectados às demonstrações financeiras, o próximo passo virá naturalmente: a interconexão com o sistema tributário.
Veremos, muito provavelmente, nos próximos cinco anos:
a tributação de carbono entrando em cena de forma regulada;
a criação de créditos fiscais verdes atrelados a desempenho climático comprovado;
a expansão da fiscalização cruzada digital, combinando dados contábeis e ambientais;
e a consolidação da figura do tax partner ESG, profissional híbrido que entende tanto de CPCs quanto de carbono.
O fiscal e o climático vão se encontrar
O caminho é claro: o clima entrará na contabilidade; a contabilidade tocará o fisco; e o fisco passará a regular o clima. As IFRS S1 e S2 são a pedra fundamental dessa ponte. Elas não alteram o imposto hoje, mas preparam a arquitetura para a tributação do amanhã — uma tributação que premiará eficiência energética, transparência e governança, e penalizará inércia e opacidade.
O contador e o advogado tributarista que ainda enxergam sustentabilidade como tema periférico estão olhando o retrovisor.O futuro da tributação — assim como o futuro dos negócios — é climático, digital e transparente.E ele começa a ser escrito, silenciosamente, nas notas explicativas dos relatórios S1 e S2.



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